segunda-feira, 19 de maio de 2014

NO 1.º CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA (1914-1918)

UMA PÁGINA ESQUECIDA 
DA 
GUERRA EM MOÇAMBIQUE


Como um furacão assolador, as vitoriosas tropas de von Lettow invadiram e talaram, na Primavera de 1918, todo o Norte de Moçambique, numa audaciosa investida sobre Quelimane.

Os nossos aliados sul-africanos, a pretexto de nos auxiliar, colaboravam na invasão, com a mais insolente arrogância, por onde quer que passassem, era o seu primeiro cuidado captarem a confiança indígena, para depois o indispor contra nós, minar pela base todo o nossos prestígio e soberania aos olhos crédulos das populações autóctones. Nessas “contradanças” de marchas e retiradas, duas companhias sul-africanas chegaram em fins de Junho a Nametil e acamparam perto. O Tenente Humberto de Ataíde, como comandante do posto e cumprindo directrizes recebidas, apresentou-se ao comandante da coluna e ficou às suas ordens.

O Tenente Humberto de Ataíde (à nossa esquerda) aquando em Angola com o
Alferes Aragão, heróico comandante dos Dragões em Naulila
(colecção particular)



Chegara-lhe, então, a sua hora da fatalidade! Colhido pelas engrenagens dessa tenebrosa máquina de cobiça e de traição política sul-africana, o pobre e ingénuo herói estava de antemão condenado a não mais se desenvencilhar dela, senão bem triturado, com o coração e a alma sangrando agonias.

As hostilidades entre o major sul-africano e o oficial português romperam daí a dias…Começou por uma nota em africânder, denunciando como suspeitos de entendimentos com o inimigo, todos ou quase todos os sipaios da guarnição do posto. Calando a sua revolta pelo grosseiro embuste, não tendo maneira de contrabater a infâmia, o Ataíde cedeu. Dadas as circunstâncias, as ordens recebidas, a natureza da suspeição, proceder de outro modo seria provocar desde logo o conflito de jurisdições que se lhe afigurava grave.

Consentiu, pois, em que fossem desarmados os seus soldados indígenas e ficou apenas com meia dúzia de sipaios, mal armados e um Sargento europeu.

Entretanto, havia informações de que os alemães avançavam por este Distrito, devendo forçosamente passar pelo posto de Nametil. Os sul-africanos comunicaram ao Tenente Ataíde que tomasse as suas precauções para a contingência duma vitória alemã no inevitável combate que se devia travar. Desnecessária advertência, pois que essa torpe milícia sul-africana até então para nada mais servia senão para ser periodicamente zupada e escarnecida pelos aguerridos askaris de von Lettow-Vorbeck! O Tenente Ataíde tomou pois as suas precauções que tão-somente consistiam em evitar que os armazéns do posto, abarrotados de víveres, viessem a cair nas mãos dos alemães vitoriosos.

Sipaios (colecção particular)


Dois dias depois, um intenso e longo tiroteio para os lados do bivaque sul-africano põe-no de sobreaviso. Devia ser o anunciado combate, Ataíde passou a noite ao relento, com a sua gente, e disposto a todas as eventualidades.

Acabado o tiroteio tratou logo de se informar, mas os sul-africanos tinham debandado, levantando o seu bivaque, sem deixar rasto, nem notícia. Dos alemães também não havia notícias. Para onde teriam ido? Ter-se-iam internado no mato, como era a sua táctica, para caírem de surpresa, pela madrugada, sobre o posto alemão? Nada se sabia…

Ignorante de tudo, desajudado de todos, sem soldados para defender o posto, nem elementos para apreciar a situação, então, a fim de evitar um mal maior, cumpriu as ordens anteriormente recebidas – por fogo aos armazéns!

Seguidamente, com a sua magra escolta, marchou ao acaso até encontrar esses tredos aliados. E o seu pasmo não conheceu limites, ao vir topá-los, muito tranquilos, bivacados no posto de Mùatúa, a algumas léguas à rectaguarda de Nametil.
- «Que não! Não tinha havido nada!», foi a insólita explicação que obteve. «O tiroteio que se ouvira, fora simples ensaio de metralhadoras. E que ele, Tenente Ataíde, não devia ter mandado incendiar os depósitos…».

Tão alarvemente posto em cheque, por essa reles tropa africânder, a sua honra de militar e de português, não lhe sofreu mais o ânimo ouvir-lhes as insolências. Só lhe restava uma solução – um inquérito, um concelho-de-guerra, a ilibação total! Nesse sentido remeteu logo um extenso relatório ao comandante militar português da região, o então Major José Cabral, seu devotado amigo e que mais tarde foi Governador-geral de Moçambique.

Não obteve resposta!

Tropa de África (colecção particular)


Debalde mandou segunda, terceira nota e nada! Por fim num telegrama angustioso, pedia urgentemente uma palavra, uma sanção, fosse o que fosse….e a resposta nunca chegou!

Convencido, enfim, de que cometera um erro crasso, tão facilmente confundível com a cobardia, que nem desse amigo certo merecia uma palavra boa, um gesto de defesa, um apelo, tornou-se juiz da própria causa. E foi inexorável consigo mesmo, o ingénuo, o romântico, o impoluto herói!

A miserável cabala dessa tropa do sul de África tinha sortido os seus efeitos. As ordens recebidas lá de baixo, da União, foram cumpridas à risca. Porque veio a saber-se depois, que nenhuma das notas, dos telegramas, dos angustiosos apelos do Tenente Humberto de Ataíde ao seu comandante e amigo José Cabral, tinham chegado ao seu destino. Os miseráveis, por cálculo ou por desdém, tinham-nos cassado todos, interceptando todos, retido todos entre as suas papeladas.

Foi apenas isto, esta pequenina torpeza, que ele ignorou sempre, de que ele nem suspeitou nunca, o que levou a condenar-se e a justiçar-se por suas mãos.

Só quem nunca se viu ainda em África, sozinho consigo mesmo, nesse lôbrego e hostil silêncio do mato africano poderá acusar esse bravo rapaz de fraqueza de ânimo nesse minuto supremo. Demais ele andava adoentado, convalescente ainda de uma crise de febres. E não há nada mais depressivo que um longo estágio de vida sedentária em África.

Num relatório do Sargento que até ao fim lealíssimo, o acompanhou sempre, mas com quem ele, decerto, por disciplina e orgulho nunca entraria em confidências, disse:
- «No dia 4 de Agosto, desesperado de obter qualquer resposta do Sr. Major Cabral, o Sr. Tenente Ataíde fechou-se no seu quarto a escrever cartas e a rasgar papéis. Às três horas da tarde, tendo perguntado ainda se tinha vindo algum correio para ele, como nada houvesse de facto, ele tornou a fechar-se no quarto e pouco depois desfechou a sua pistola no coração”. As duas cartas que deixou, eram uma para a sua mãe e a outra para o Major Cabral

Perante o exemplo dessa vida e a tremenda lição dessa morte, não será lícito afirmar-se que o precoce fim do Tenente Humberto de Ataíde foi alguma coisa mais que o simples óbito dum oficial em terras de África? Não teria morrido com ele o velho brio português? E não nos assiste ainda o direito de fazer outra pergunta?
- O que haveria a esperar deste honrado e heróico moço? De que prodígios não seria ele capaz, para maior glória do seu tempo e da sua Pátria?
                                                         Carlos Selvagem
                                                     4 de Agosto de 1928



Uma sentinela (colecção particular)



Nota:
Sem comentários, porque os não precisa, transcrevo uma carta, a última. Esta devia andar decorada por todos aqueles que em Portugal vestindo uma Farda do Exército, têm ainda da Honra Militar uma noção ambígua e difusa

« Mùatúa, 4 de Agosto de 1918

Meu Exmo. Amigo

Esta carta é-lhe devida por duas razões: porque V. Ex.ª faz favor 

de me dispensar a sua amizade e porque lhe devo pedir perdão de 

não ter sabido corresponder até ao fim à confiança que em mim 

depositou.


Pratiquei em erro. Erro tanto mais grave quanto ele pode ter

consequências gravíssimas sob o aspecto da nossa soberania aqui 

–mais aqui declaro a V. Ex.ª – no momento em que o pratiquei 

estava absolutamente convencido de que tal devia fazer. Sou uma 

vítima dos acontecimentos e não um cobarde vulgar. Nunca menti 

na minha vida em coisas que a minha dignidade pessoal estivesse

 envolvida. Tudo quanto fiz, fi-lo de acordo com a minha

 consciência e não precisava, pois, de para me justificar, recorrer 

a  embustes e a falsidades. Nesta ocasião suprema, muito menos

 vou faltar à verdade, que todo o homem de honra deve colocar 

acima de tudo. Declaro a V. Exa. Que na ocasião em que fiz o 

desgraçado acto, que hoje me leva ao aniquilamento, eu, e julgo

 que comigo, quantos me acompanhavam, estávamos

 absolutamente convencidos de que se praticava a única solução

 que as circunstâncias reclamavam. Fui infeliz, mas não fui 

cobarde. Durante a minha vida de oficial, várias vezes afrontei a 

morte, em casos bem mais terríveis do que em Nametil e nunca

 dela tive medo. Hoje mesmo que findo esta, vou meter na cabeça 

o ponto final da minha vida. Julgo que dou uma prova mais de

que se saí de Nametil o não fiz por receio de morrer. Tendo

obrigação de morrer no meu posto, eu não me julguei com o

direito de sacrificar impiedosamente e ingloriamente os que me

 acompanhavam e daí a razão do meu acto.

Um inquérito bem ordenado, feito com amor e zelo mostrará, que

 sou uma vítima da confusão desgraçada em que os ingleses nos

 colocaram.

Se em minha consciência, fiz o que devia fazer, nem por isso deixo

 de compreender que me enganei e pratiquei uma grave falta.

 Faltas desta natureza – só uma coisa as limpa e redime. O sangue 

– E por isso me mato.

Resta-me pedir, que aos que comigo me acompanhavam nada seja

 feito. Assumo a completa e inteira responsabilidade de tudo.

 Para vítimas basto eu!

Adeus, meu caro amigo, abracem em meu nome, quantos amigos

 temos – o Bessa, o João de Meneses, o Sarmento Pimentel, o 

MacBride, o Cunha Leal e tantos outros cujos nomes me ocorrem 

ao coração, a este coração a que eu desejava estreitar e que 

dentro em pouco estará frio e inerte. Mais uma vez perdão e o 

último abraço do seu companheiro de ideais.
                                                                                      
                                                                    Humberto Ataíde



Coordenação de Textos e imagens: marr

2 comentários:

  1. Caro Amigo

    Tenho andado bastante ocupado na preparação do meu novo livro de crónicas de situações que vivi enquanto jornalista. Mas, venho passando por cá.

    Estes textos de Carlos Selvagem são, como sempre, uma maravilha. Mas a carta de despedida de Humberto Ataíde consegue ser mais do que isso. É inultrapassável! Assim fosse sempre e este nosso País seria diferente. Mas, com este (des)Governo...

    Também lhe agradeço os e-mailes que me vem enviando. Resumindo: um grane obrigado

    Abç

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